25 de novembro de 2010

Os Genes da Guerra

 A guerra civil brasileira expressa no seu genoma a assimetria, a desproporcionalidade absoluta entre agressor e agredidos. Nos enfrentamentos sociais, políticos e étnicos neste país, desde a sua ocupação pelo colonizador português, jamais em quaisquer processo político, movimento revolucionário, rebelião social ou disputa econômica os dominadores foram ameaçados pelos dominados. Rever a história oficial da estadolatria colonial e do Brasil independente, inserindo suas diversas fases e faces, é um sacrilégio incabível para o Estado e seus perenes ocupantes, o senhoriato. Trata-se somente de fatos negativos do nosso passado, algumas crises episódicas no presente, e um passivo moral de poucas ou anônimas baixas, uma historieta.

Todos os conflitos armados que percorrem a nossa história, vistos como lutas de classes ou construção da história nacional, foram lutas interclasses, tiveram presentes componentes étnicos: a Guerra dos Mascates; os Emboabas; a Insurreição Pernambucana, de 1817; a Inconfidência Mineira; a Confederação do Equador; a Sabinada; a Cabanada, em sua primeira fase; a Balaiada, em sua fase inicial; a Guerra dos Farrapos; a Praieira. Em alguns destes movimentos pode-se assinalar a presença popular, de per si, não caracteriza um movimento como popular. Nos fatos acima, o componente popular funcionou como massa de manobra ou ponto de apoio. A direção foi dos dominadores (Freitas, 2002).

A posse absoluta dos recursos naturais do país pela etnia dominante – um saque assimétrico – destruiu, ininterruptamente, os oponentes necessários: os índios, escravizados inicialmente e finalmente subjugados; os escravos utilizados como mão-de-obra intensiva nas culturas e depois caçados nos quilombos como animais perigosos; como ex-escravos, concentrados em novas senzalas urbanas; no século XX, êxodo de milhões de trabalhadores agrícolas para as periferias e subúrbios das cidades com a modernização agrícola e a concentração de terra, ascenderam à condição de pobres, de miseráveis, de segregados étnicos, somando-se aos milhões de outros existentes nos centros urbanos. Confinados, tendo a coibição policial-militar continuamente diante de si, tão longe da civilização e na totalidade do tempo próximos a morte programada. Uma diáspora infinita.

O etnicismo está no cerne da fundação do Estado Independente que não reconheceu a sua periferia social e econômica -  as nações periféricas escravizadas pelo regime colonial. A história oficial higieniza essa culpa original ao colocar os agredidos como agressores. Essa violentacão  incontrolada e maciça contra as populações segregadas exigiu uma política central: evitar a desagregação do Estado etnicista brasileiro e, para isso, foi imperativo um esforço (estratégico) contínuo de repressão social.

A guerra civil é, concomitantemente, tragédia étnica, comédia política e profecia social. A guerra é a tragédia; as propostas de pacificação do Estado, a comédia; a rebelião social, a profecia. Qual seria precisamente a nova etapa da guerra civil brasileira? Para todos os teóricos do Estado, é um enfrentamento bipolar entre as esquadras da lei e a macrocriminalidade, que equivocadamente é chamado de crime organizado, como veremos mais adiante. Essa fantasia teórica atende à demanda da política do Estado, justificando suas posições. O equívoco se origina na tentativa de descobrir uma saída e tornar legítimo o enfrentamento. O Estado repele a hierarquia democrática: a passagem entre o jurídico e o político, entre a lei e o poder, é dúbia no código social vigente, impedindo a solução de conflitos.

Os enormes abismos estruturais na área social do país, agravados por uma crise de identidade nacional, criaram a pior das guerras: é uma guerra social fria. Os modelos teóricos desabaram e a quebra de paradigmas está bloqueada pelo novo tipo de guerra que enfrentamos. Com a implosão definitiva da fantasia etnicista de miscigenação e cordialidade interétnica, as maiorias sociais foram categorizadas entre o que custam e o que produzem. O paradoxo dá-se, então, porque estes conflitos, - confrontos diretos entre dois ou mais grupos que disputam um território e rendas – Estado e Macrocriminalidade – provocam uma nova geografia urbana com definições de novos espaços vitais pela sua dinâmica policial-militar.

Formalmente, a legitimação da guerra em nome de uma ordem social não é nova. Novo, a partir do fim do século passado, foi as guerras civis se legitimarem como artífices de uma nova ordem social. E constituem a mais clara expressão da persistência do mesmo desequilíbrio social e político existente desde nossa fundação. Não de sua superação. Em termos filosóficos e histórico-culturais, as guerras modernas podem definir-se com uma metáfora militar que configurou de maneira central a consciência da cultura moderna do século XX: são as vanguardas da civilização. As guerras são vanguarda na medida em que constituem a expressão mais avançada de suas tecnologias, de seus poderes políticos e de seus preceitos morais.

A guerra contra a criminalidade é uma guerra civilizatória neste sentido e não só porque se anuncia propagandísticamente como o princípio do que certamente não será: uma nova ordem social. Converteu-se em um apropriado paradigma tecnológico e mediático o uso máximo de repressão e genocídio social. Esta nova investida pela ordem e pela paz dos cemitérios exibe ícones técnico-científico declarando-os estritamente humanitários. Seus fins não são liberar um território ilegalmente ocupado, as favelas cercadas e canudizadas, evitar genocídios, pôr fim à violação maciça e planejada de mulheres, proteger minorias étnicas e religiosas, restaurar a paz para a sociedade civil. Esta definição humanitárias da acometida contra a macrocriminalidade se vale de matáforas cirúrgicas e clínicas cujo último significado é restaurar a saúde de um corpo doente.

Leitura indispensável.

Paulo Pepulim


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